INTRODUÇÃO
Em função da grande necessidade de adaptação por parte do organismo às constantes mudanças nas formas de viver, principalmente nos grandes centros urbanos, o homem moderno ultrapassa seus limites quase que diariamente. A perigosa associação entre consumo e qualidade de vida, faz com que muitos indivíduos empenhem cada vez mais seu tempo e energia no trabalho e em atividades ligadas a ele. Isso pode gerar satisfação para alguns, mas também causam emoções negativas, colocando-os em constante estado de estresse. A exposição crônica a esse tipo de rotina pode promover, entre outros fenômenos, prejuízos psicológicos, no sistema fisiológico e imunológico, bem como nos processos cognitivos. Desta forma, ao invés de melhora na qualidade de vida, observa-se o aumento do número de pessoas adoecidas, física e emocionalmente. Muitas delas têm que se afastar de sua rotina laboral e, às vezes, também das atividades sociais e de lazer.
As especialidades da Medicina ocidental moderna têm sua relevância e contribuem para importantes avanços na área da saúde física, buscando conhecimento e técnicas para o tratamento de órgãos acometidos por patologias ou para remissão de sintomas. Entretanto, o próprio processo de especialização também lança um olhar mecanicista e reducionista sobre o ser humano. Além disso, como que num acordo velado, alguns (im)pacientes e seus especialistas se apoiam em fórmulas milagrosas que garantem resposta rápida, fácil e eficiente para retomada do jogo do ‘tempo é dinheiro’ . Porém, para a promoção da saúde do ser humano tal como ele é, complexo e indivisível, é essencial interpretá-lo e cuidá-lo por inteiro, inclusive em nível de profilaxia, pois a recorrência dos quadros de patologia física pode acarretar distúrbios emocionais, e vice-versa.
No caso da Fibromialgia (FM), faz-se necessária a remissão dos sintomas, já que eles impedem a preservação da qualidade de vida do paciente. Também é essencial compreender e tratar a origem de suas emoções para que corpo e psique caminhem juntos na direção de uma melhoria do indivíduo como um todo. Em nossa prática clínica com portadores desta síndrome, observa-se um crescente número de pacientes que chegam aos consultórios psicológicos já bastante adoecidos emocionalmente. Muitos deles relatam suas dores de longas datas e alguns parecem estar acostumados com o estado patológico. De forma geral são bons conhecedores da doença, fruto de suas peregrinações clínicas e ambulatoriais, prescrições e automedicações. Em sua maioria, não sabem ou não aceitam, que recursos psicoterapêuticos corporais podem auxiliar na remissão dos sintomas.
O relaxamento é uma forma de condicionamento psicofisiológico, apresentado por meio de inúmeras modalidades e aplicado em diversas áreas. Sabe-se que a constante tensão muscular é muito desgastante para o organismo, consumindo ou acumulando grande quantidade de sua energia em pontos específicos de sua estrutura. Mas, também é sabido que o corpo reflete processos que ocorrem em nosso mundo psíquico. Portanto é necessário que ambos sejam reconhecidos e tratados. O uso da técnica calatônica pode ser uma via de libertação de energias retidas ou não utilizadas, promovendo, assim, a descontração dos músculos e a ampliação da consciência. Facilita a integração de conteúdos inconscientes e aspectos desconhecidos da personalidade do indivíduo, conectando o corpo e a alma em um único sistema. Quando é impossível diminuir o ritmo e a tensão das atividades cotidianas de um indivíduo, ainda é possível administrar o fluxo de energia psíquica, pelo relaxamento calatônico, provedor de um encontro significativo consigo mesmo. Então, sendo a Calatonia uma técnica de relaxamento, que promove reorganizações das energias psíquicas, ela propiciaria a remissão e prevenção dos sintomas da FM, pela regulação do tônus muscular?
A hipótese aqui levantada é de que a Calatonia, promove a remissão dos sintomas da FM, tal como as medicações analgésicas, anti-inflamatórias e mio-relaxantes, mas também sua prevenção, pela regulação do tônus emocional e físico. Nossas experiências clínicas apontam que sim, mas não representam dados numericamente significativos para alguma generalização. Desta forma, o objetivo deste artigo é, a partir da literatura especializada, conceituar a Psicossomática na Psicologia Analítica, a Calatonia e seus alcances clínicos, o diagnóstico e a terapêutica da FM e provocar reflexões sobre possíveis contribuições da técnica calatônica para o tratamento desta síndrome.
A PSICOSSOMÁTICA NO MODELO ANALÍTICO
No senso comum a palavra psicossomática está amplamente associada a doenças de ‘fundo emocional’, cujos sintomas muitas vezes são considerados inverídicos, mesmo pelos mais próximos ao doente. Por mais que a gênese de alguma enfermidade esteja relacionada a fatores emocionais, psique e corpo adoecem juntos, por inteiro e completo. Os sintomas são tão reais quanto o sofrimento físico e mental do paciente. A abordagem Psicossomática busca compreender o indivíduo de forma única e integral, concentrando sua atenção no doente e não apenas na doença. Sugere também que corpo e alma atuam em constante interdependência, isto é, não há como um corpo adoecido não afetar a esfera psíquica e vice-versa, assim como não há como cuidar de uma psique, sem refletir uma melhora no corpo.
Desde o nascimento, o ser humano tem sua saúde física e mental regida de acordo com a forma que se relaciona com o mundo. Dependendo da maturidade psíquica, alguns adoecem por não conseguirem se relacionar adequadamente com as demandas do ambiente, enquanto outros são mais adaptados e, portanto, sofrem menos. Segundo Ballone (2007), os processos patológicos psicossomáticos devem ser considerados como tipos de respostas emocionais resultantes de como avaliamos, enfrentamos e nos adaptamos (ou não!) à realidade que se apresenta. Desse modo, as manifestações fisiológicas chamadas de somatizações podem ser entendidas como uma forma não verbal de se expressar. Quanto menos desenvolvidos e eficientes são os mecanismos mentais ou cognitivos de sentir, falar e agir, mais intensos são os fenômenos somáticos necessários para expressar emoções e pensamentos. A Psicologia Analítica tem por objetivo compreender o ser humano em sua totalidade. Os que se submetem a trabalhos terapêuticos nesta linha teórica são incentivados a se conhecerem profundamente, em suas fragilidades e capacidades, podendo desenvolver a autoaceitação pela união e equilíbrio entre consciente e inconsciente.
Neste ponto, uma breve apresentação do conceito de complexo é importante. Ele pode ser descrito como uma ideia ou imagem padronizada e impregnada de afeto, simbolizando a percepção e ação do indivíduo no mundo. São muitos os complexos capazes de distorcer a compreensão da realidade. Para Jung (2000, § 210), os “complexos são responsáveis por nossos sonhos e, também, por nossos sintomas”. Possuem como núcleo os arquétipos, que são padrões/formas típicas que definem o ser humano, sendo compartilhados por toda a humanidade. Embora muitas vezes pareça que atuamos no mundo de forma autônoma, estamos sempre sendo conduzidos por algum complexo. Eles são autônomos e, quando constelados (ativados), acionam automaticamente corpo e psique, atuando de forma livre e sem o nosso controle.
De acordo com Ramos (2006), Jung postulava que as neuroses e as psicoses apresentavam sintomas de natureza somática ou psíquica, originados nos complexos. E quanto maior fosse a intensidade e autonomia do complexo, maiores seriam os sintomas. Afirma ainda, que, quando um complexo está constelado, não ocorre somente uma alteração fisiológica, mas uma transformação total no corpo, consciente ou não. A doença representa, assim, uma reação do organismo, reagindo, ou compensando a repressão/negação emocional. Esse conteúdo ainda inconsciente fica retido no complexo produzindo os sintomas, com o objetivo de integrar e religar o ego ao Self. Este último representa a totalidade do ser, a instância organizadora da psique, abrangendo inconsciente e consciente. Assim, não havendo condições para simbolizar verbalmente uma dor emocional, ela será manifestada no corpo através do sintoma/doença.
Portanto, para a Psicossomática com base analítica, o sintoma/doença é a representação de um complexo, isto é, uma tentativa do Self se revelar, com o objetivo de unir e integrar conteúdos inconscientes reprimidos, ou mesmo desconhecidos, à consciência. Encontrar o significado do que se representa simbolicamente no sintoma/doença pode ajudar o paciente na remissão de seus sofrimentos físicos e emocionais.
A CALATONIA E SEUS ALCANCES
A Técnica Calatônica foi desenvolvida pelo médico húngaro Phetö Sandor (1916-1992), antes e durante a segunda guerra mundial, com base nas observações feitas nos casos de reamputação de feridos e congelados. Foi percebido que, além da medicação e dos cuidados de rotina, o contato bipessoal em conjunto com a estimulação via toques suaves nas extremidades do corpo, pés e cabeça, produzia descontração muscular, comutações vasomotoras e recondicionamento do ânimo dos operados, numa escala pouco esperada (Sandor, 1982). Inicialmente esse procedimento visava diminuir as dores físicas e, posteriormente, as dores emocionais. Após o fim da guerra, os estudos e trabalhos com a Calatonia continuaram a ser aplicados não somente em clínicas cirúrgicas, mas em pacientes das áreas de Psicologia e Neuropsiquiatria. Dessa forma, Sandor associou o trabalho corporal através de estimulação tátil sutil à Psicologia Analítica, nomeando seu método como ‘Integração Psicofísica’. O trabalho se ampliou e no decorrer de mais de 40 anos se solidificou, especialmente no Brasil.
O termo ‘Calatonia’ significa um tônus descontraído, solto, mas não somente do ponto de vista muscular. Origina-se do verbo grego Khalaó e significa ‘relaxação’; mas significa também, ‘alimentação’, ‘afastar-se do estado de ira, fúria, violência’, ‘abrir uma porta’, ‘desatar as amarras de um odre’, ‘deixar ir’, ‘perdoar os pais’, ‘retirar todos os véus dos olhos’, etc. Os toques sutis resultam em uma significativa adequação do tônus nos níveis físico, emocional e mental (Sandor, 1982). No nível físico, além do relaxamento muscular, há a regulação da respiração, dos batimentos cardíacos, da temperatura corporal, da circulação sanguínea e linfática. No nível emocional, ocorre uma aproximação em larga escala a campos extrarracionais da psique, conscientes e inconscientes, às áreas de apoio transpessoal e ao núcleo da totalidade psíquica. No nível mental, possibilita um alívio dos fatores estressores causados por estímulos externos da vida cotidiana.
A pele é o maior órgão do corpo humano, possuindo a mesma origem embrionária do sistema nervoso, ou seja, ambos se desenvolvem a partir da ectoderme, a mais externa das três camadas embrionárias. Estudos recentes apontam que técnicas de contato com a pele alteram significativamente as condições bioquímicas do cérebro. Field (2005, apud Spaccaquerce, 2012) cita que esses estudos mostram benefícios dos toques e das massagens para diversos fins como, por exemplo, a redução de níveis de cortisol, auxiliando o sistema imunológico e a memória, bem como o aumento de serotonina, dopamina e outros neurotransmissores responsáveis pelas sensações de prazer e bem-estar. Por ser o mais externo e extenso órgão de contato com o ambiente, para Montagu (1998, apud Gaeta, 2010) a pele é o primeiro meio de comunicação do ser humano e atua como uma roupagem contínua e flexível, envolvendo e protegendo o homem por completo.
As comunicações que transmitimos por meio do toque constituem o mais poderoso meio de criar relacionamentos humanos, como fundamento da experiência, e, talvez, depois do cérebro, a pele seja o mais importante de todos os sistemas de órgãos. O sentido mais intimamente associado à pele, o tato, é o primeiro a desenvolver-se no embrião humano (Montagu, 1988 apud Gaeta, 2010, p.39).
Para melhor compreensão dos alcances clínicos da Calatonia, julga-se necessária a apresentação de alguns conceitos relativos à Psicologia do Desenvolvimento. Segundo Siegel (1999, p.10), “as interações com o meio, especialmente os relacionamentos com as outras pessoas, moldam diretamente o desenvolvimento da estrutura e função do cérebro”. Esse processo se inicia através da memória implícita, a qual se baseia em estruturas cerebrais que estão intactas desde o nascimento, sendo acessível ao longo de toda a vida. Não requer processamento consciente durante a codificação ou recuperação. É no primeiro ano de vida que o bebê desenvolve, implicitamente, parte de sua memória emocional e traços de sua personalidade. Esta memória ocorre por meio de fatores genéticos e das primeiras relações com seus cuidadores, determinando assim, a percepção que terá de si mesmo e do mundo. A memória implícita leva o bebê a generalizar e condicionar as experiências iniciais de afeto, tanto positivas quanto negativas. Portanto, um indivíduo poderá ter facilitado ou dificultado o desenvolvimento de sua psique, da formação da sua identidade e da sua relação com o outro, de acordo com essa aprendizagem inicial, já que reações futuras podem ser determinadas por essa memória de forma não consciente. A memória implícita irá direcionar as escolhas e atitudes. “Simplesmente, entramos nestes estados enraizados e vivemo-los como a realidade da nossa experiência presente” (Siegel, 1999 p.55). Embora os relacionamentos iniciais determinem o desenvolvimento mental e emocional, a mente está aberta para novas formas de interação por toda a vida. Assim, é possível transformar ou ressignificar experiências negativas, impressas de forma implícita, por meio de relações interpessoais positivas.
Rios, Armando e Regina (2012) apontam que a memória implícita envolve estruturas cerebrais funcionais desde o nascimento, sendo sempre presente na aprendizagem do primeiro ano de vida e participando do que chamamos de ‘eu’ e também de nossa ‘visão de mundo’. Sendo assim, as primeiras relações de um bebê com seus cuidadores, os fatores genéticos e os traços de sua personalidade irão determinar a percepção de si mesmo e do mundo, suas preferências, juízos, entre outros. Se a imagem que se forma é de um mundo benevolente, mesmo havendo frustrações previsíveis, o bebê ficará menos exposto à ansiedade, o que facilitará o desenvolvimento da sua psique. Porém, se experiências de apego inseguro ou instável forem registradas, a percepção de mundo será distorcida negativamente, desenvolvendo padrões de interação distantes ou amedrontadas. Neste último caso, a memória implícita o leva a generalizar as experiências que viveu e o condiciona a um estado emocional ansioso e defensivo. Além disso, pode provocar prejuízos na aprendizagem e no desenvolvimento cognitivo e, ainda, inabilidades para experimentar o novo e estabelecer relacionamentos interpessoais.
A memória implícita relaciona-se ao conceito junguiano de complexo, que se define como um conjunto de imagens com determinada carga afetiva, que distorce em sua atuação inconsciente a percepção que o indivíduo tem do mundo, a atribuição de significados e a organização subsequente de sua resposta (Rios et al. 2012, p. 22).
Rios et al. (2012) acrescentam que a Calatonia, quando inserida no processo psicoterápico, pode atingir justamente essa camada do inconsciente na qual os complexos foram formados (em fase anterior à estruturação do ego) e, portanto, não acessível à consciência pelo diálogo verbal. O processo apresenta um acolhimento seguro, ficando claro que a psique e corpo serão considerados e contidos, possibilitando assim uma entrega consciente do paciente às transformações necessárias. Como os padrões implícitos ocorrem durante toda a vida, eles poderão ser reescritos, abrindo grandes possibilidades de reorganização afetiva.
Assim como a memória implícita, a memória de procedimento (ou memória corporal) registra vivências pré-verbais e não verbais durante toda a vida. Segundo Tonella (2009, p.1), trata-se de uma memória “corporal e interacional”. Descreve também que, nos primeiros anos de vida, essa memória sistematiza as experiências emocionais e os procedimentos motores desenvolvidos pelo bebê, bem como toda experiência que implique procedimentos corporais, motores e interacionais ao longo da vida. Também possibilita o acesso à formação do eu e da forma de se relacionar com o outro. Essas percepções iniciais são codificadas na memória de procedimento e na memória implícita de forma inconsciente e não verbal, por exemplo, pelo seu aparelho sensório um bebê é capaz de identificar estados emocionais de sua mãe. Esse processo de ‘recordação’ exige que a prática também seja corporal e/ou interacional. Consequentemente, a matriz do inconsciente é formada por essas percepções emocionais e corporais, desenvolvidas e marcadas no corpo, tornando-o próprio e singular. Essas memórias são capazes de delinear o corpo, sua forma, tonicidade, gestualidade e também, modelar as relações interpessoais, a postura física, a sensualidade, sexualidade, etc. Em situação terapêutica, a reativação destas memórias ocorre, quando a comunicação presente é analogicamente próxima à comunicação inicial que produziu sua codificação na memória corporal, ou seja, é necessária a interação não verbal, o contato visual, a tonalidade de voz e o contato físico. Em resposta a essa interação, o indivíduo poderá criar novas formas e procedimentos afetivos, sensórios e motores para a construção de um Self seguro (Tonella, 2009).
Portanto, o toque sutil aplicado na pele e o contato bipessoal são as principais características da técnica calatônica. Esse contato físico entre paciente e terapeuta é importante, porque ambos são igualmente tocados um pelo outro em seus corpos físicos e simbólicos. A Calatonia, além do relaxamento físico e do equilíbrio mental, ainda possibilita um rebaixamento da consciência, permitindo assim que conteúdos inconscientes surjam espontaneamente em forma de imagens autônomas, lembranças, sensações ou emoções e possibilitem uma integração das mesmas à psique. Tais conteúdos possuem de alguma forma, ligações com os problemas ou distúrbios apresentados como queixa e constelam as potencialidades para o movimento de novos rumos, quando acolhidas e integradas à história do indivíduo.
O DIAGNÓSTICO E AS POSSIBILIDADES TERAPÊUTICAS DA FM
A literatura médica aponta controvérsias entre os reumatologistas sobre o fato de a FM existir como uma entidade clínica distinta. Segundo Scheibel e Machado (2014), isso ocorre devido à ausência de anormalidades específicas e à dificuldade na avaliação das queixas feitas pelos pacientes já que a dor, a fadiga e a disfunção cognitiva podem ocorrer em quadros de depressão e também como resposta inadequada ao estresse. Como exemplo da complexidade para a determinação deste quadro, os mesmos autores relatam que foram observadas associações dos seus sintomas com doenças da tireoide, em pessoas infectadas com o vírus HIV e mulheres com hiperprolactinemia, sendo estes pacientes 15 vezes mais propensos a desenvolver FM. Por outro lado, os fatores que a caracterizariam como uma doença específica são as mudanças no padrão de sono e as alterações nos transmissores neuroendócrinos, sugerindo uma má regulação do sistema autonômico e neuroendócrino. Este quadro clínico consta no CID-10 sob o código F45.4 (transtorno doloroso somatoforme persistente) como uma dor persistente, intensa e angustiante, não explicável inteiramente por um processo fisiológico ou um transtorno físico. Ocorre num contexto de conflitos emocionais e de problemas psicossociais, aspectos importantes para a compreensão deste transtorno (Brasil, 2013).
A FM afeta 2% da população e é responsável por 25% das consultas nos ambulatórios de reumatologia. Knoplich (2001) cita que em metade dos casos os sintomas têm início após um evento específico, enquanto que nos outros 50% não é possível detectar nenhum gatilho para o aparecimento dos mesmos. Assim, as possíveis causas desta síndrome são ainda desconhecidas. Entretanto, sabe-se que há disfunções cerebrais, em nível químico e de transmissão sináptica, que aumentam a sensibilidade nas regiões afetadas. Uma das queixas mais importantes é a dor muscular (generalizada ou em pontos específicos do corpo), mas há também rigidez corporal e articular com a sensação que as ‘juntas’ estão inchadas e doloridas. O mesmo autor relata ainda que as biópsias realizadas nos músculos, tendões e ligamentos, nada revelam a respeito de processos inflamatórios, lesões ou alterações estruturais e que indivíduos com histórico familiar positivo apresentam oito vezes mais chances de ter FM que o resto da população, o que reforça a hipótese de influência genética. Segundo orientação do American College of Rheumatology, há dois critérios básicos para se diagnosticar um paciente com FM: dor generalizada crônica com mais de seis meses de duração e a presença no exame físico de dor à apalpação de pelo menos em 11 de 18 locais específicos do corpo, como demonstrado na Figura 1.
Como visto até aqui, a complexidade do diagnóstico e a diversidade dos sintomas tornam também os procedimentos terapêuticos da FM campo fértil para discussões entre especialistas. Williams e Schilling (2009) consideram que o tratamento busca amenizar sintomas, desacelerar a progressão da doença, estimular o envolvimento do paciente no seu autocuidado, aprimorar capacidade funcional e restaurar a dignidade do indivíduo. Mais recentemente, Albrecht et al. (2013) descobriram que uma patologia neurovascular, presente na pele das palmas das mãos de mulheres com FM, pode incitar os sintomas já descritos anteriormente. Essa descoberta poderá apresentar novas formas de prevenção e tratamento da FM. Em meio às diversas pesquisas, um aspecto comum foi encontrado na literatura especializada: a necessidade de intervenções multidisciplinares (medicamentosas, fisiológicas e psicológicas) para a eficácia do tratamento.
Cazzola, Sarzi-Puttini, Buskila e Atzeni (2007) citam que apesar do grande número de fármacos a disposição dos pacientes fibromiálgicos, nenhum deles alcança de forma abrangente todos os sintomas, isto é, a combinação de drogas de diversas ordens é necessária para resultados terapêuticos mais amplos. Por exemplo, anti-inflamatórios e analgésicos agem apenas sobre a dor, mas, quando associados aos antidepressivos e drogas anticonvulsivantes, apresentam melhores resultados também com relação à qualidade do sono, bem estar físico e emocional (Scheibel & Machado, 2014; Knoplich, 2001).
No âmbito fisiológico, estudos confirmam a importância da realização de exercícios físicos regulares, pois a falta deles é responsável pelo enrijecimento muscular e articular. Segundo pesquisa de Culos-Reed e Brawley (2000), pacientes fibromiálgicos, que são ativos fisicamente, apresentam melhor qualidade de vida, sugerindo a inter-relação entre aspectos emocionais e físicos da síndrome. Em concordância com essa afirmação, Scheibel e Machado (2014) citam que, a longo prazo, a atividade física também é capaz de aliviar a dor, a fadiga, melhorar o sono e o humor. Além disso, a experiência clínica com estes pacientes traz evidências sobre o fato de que pessoas atuantes em alguma área profissional, na administração doméstica ou no cuidado familiar, demonstram maior empenho/ capacidade em seu autocuidado e melhor resposta a técnicas de relaxamento e consciência corporal.
Quanto às intervenções psicológicas, as abordagens psicoterápicas mais indicadas pela Medicina são a Terapia Comportamental (TC) e a Terapia Cognitiva Comportamental (TCC). Tanto Scheibel e Machado (2014) quanto Hassett e Gevirtz (2009) apontam que a TC trabalha com a mudança do comportamento operante, ou seja, visa aumentar o repertório de atitudes adaptativas pelo reforço positivo/negativo e extinguir ações não adaptadas pela punição. Em contraste com a abordagem comportamental, a TCC acredita que a modificação de pensamentos não-adaptados (supergeneralização e catastrofização, como exemplos) diminui estados aflitivos, aumenta a autoconfiança e revisa as expectativas em relação aos sintomas, resultando em diminuição de comportamentos autodestrutivos. Fernandes (2003), em seu estudo qualitativo com mulheres atendidas na rede pública de saúde, encontrou resultados benéficos da TCC em grupo associada com a Calatonia e outras técnicas de relaxamento para o tratamento da FM.
Já Knoplich (2001) defende um enfoque sociopsicossomático. Apesar de haver um componente emocional evidente na FM, os pacientes não se sentem confortáveis em realizar psicoterapia ou psicanálise, em função do seu tipo de personalidade. Sendo assim, poderão ser obtidos melhores resultados por meio de tratamentos que incluem a participação corporal com exercícios ou relaxamento, pois os pacientes sentem mais alívio em tratamentos manuais, relaxamentos, ervas, rezas, porque encontram pessoas mais dispostas a ouvir falar de suas queixas. Além disso, uma boa dose de paciência de todos os envolvidos no processo é fundamental para o sucesso terapêutico (Knoplich, 2001). No entanto, Iversen, Hammond e Betteridge (2010, apud Chakr, 2011, p. 24) advertem que “apesar de diversas evidências em favor das medidas não-farmacológicas no tratamento da FM, os resultados positivos observados não parecem se sustentar por mais de seis meses, mostrando a necessidade de estratégias de longo prazo mais efetivas”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das informações e reflexões apresentadas até aqui, buscamos discutir a contribuição da técnica calatônica no tratamento multidisciplinar desta complexa síndrome. Ao longo do trabalho de pesquisa bibliográfica nos deparamos com um cenário escasso de estudos empíricos que relacionam diretamente a Calatonia ao tratamento da FM. Esse fato reforça a relevância das nossas observações clínicas, em que os pacientes fibromiálgicos, que buscam ajuda psicológica, na maioria das vezes, são aqueles que não apresentam respostas positivas aos tratamentos convencionais. Embora a medicação esteja sempre presente em sua rotina, não há resultados no alívio da dor e em outras disfunções, como por exemplo, o humor depressivo e suas consequências. Para esses pacientes, o tratamento psicológico parece estar associado a uma fantasia de “última chance de cura”. Nesses casos, após acolhê-lo no setting terapêutico buscamos, juntos, desconstruir essa fantasia de cura e de conscientizar o paciente da complexidade/falta de informações sobre as origens dessa síndrome. Assim, podemos trabalhar possibilidades reais de melhora ou até a remissão de alguns sintomas, já que existem variações de intensidade desses, que refletem na qualidade de vida de cada indivíduo.
Ainda na clínica é possível observar que a aplicação com frequência mínima semanal da Calatonia, que os pacientes demonstram melhoras relativas, não somente nas dores no corpo, como também maior estabilidade no humor e sentimento de bem-estar. Mas é sempre importante lembrar que as respostas à aplicação da técnica calatônica se apresentam de forma muito particular em cada organismo e psique.
No caso específico da FM entendemos que as dores e seus outros sintomas também constituem uma expressão simbólica de estados emocionais complexos que, refletidos em pontos específicos do corpo, provocam intenso sofrimento. Uma mente imatura, não encontrando formas de lidar com emoções perturbadoras, tem maior propensão a transferir para a musculatura toda uma carga de sofrimento psíquico. Como consequência, surge um estado crônico de tensão causador de enrijecimento muscular, baixa tolerância à dor, fadiga, dificuldade de dormir e até, em alguns casos mais graves, a paralisação física e emocional do paciente.
É importante ressaltar o papel fundamental dos diversos métodos terapêuticos apresentados neste artigo e resgatar a necessidade de uma atitude mais acolhedora e educativa dos familiares, amigos, médicos, psicólogos, fisioterapeutas, educadores físicos, entre outros. Desta forma podemos cuidar para que a compreensão dos fenômenos patológicos não aconteça apenas pela perspectiva de um corolário de sinais e sintomas pré-catalogados, mas também pelo desenvolvimento humano global. A partir das reflexões articuladas neste texto, esperamos provocar o surgimento de novas hipóteses e suscitar interesse nos profissionais e pesquisadores atuantes nestas áreas para o desenvolvimento de novas pesquisas clínicas com pacientes fibromiálgicos.
REFERÊNCIAS
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Celi Helena
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